
HISTÓRIA do trap
Por João Pedro Boaretto e Davi Martins
Com influências norte americanas, as faixas modernas e melódicas são acompanhadas de carga social e política
Muito mais do que um gênero musical, o trap pode ser considerado um expoente cultural brasileiro. Seu surgimento data a década de 1990, quando melodias mais modernas e melódicas se juntaram ao rap e originaram o trap atual. O estilo é caracterizado pelo uso de batidas pesadas, sintetizadores, samples de instrumentos acústicos e eletrônicos. Apesar de ser um subproduto do rap tradicional, que possui letras mais políticas e identitárias, é o trap que vem ganhando mais espaço nas paradas musicais.
Uma das ferramentas mais utilizadas nas suas faixas é o autotune: processador de áudio capaz de “corrigir” e “afinar” notas vocais e instrumentais, podendo ser utilizado no momento da gravação, na mixagem da música, ou ainda nas apresentações ao vivo. Mas o trap não se limita ao seu uso.
É fato que alguns artistas do pop e do rap, como Usher, Diplo e Gucci Mane, já realizavam experimentações rítmicas que marcariam a grande diferenciação do trap com os demais estilos mesmo antes de 2010: a presença de bumbos em tempo duplo/triplo e divisões chimbais bem mais rápidas que as habituais.
Além de explorar elementos do funk e do bounce, as raízes da musicalidade do trap englobam 4 subgêneros mais antigos do rap, que eram populares entre os anos 90 e 2000: chopped and screwed, de Houston; bounce, de New Orleans; bass, de Miami; e o crunk, de Memphis.
Mapa dos Estados Unidos; Reprodução: YouTube/Canal Semporcento
Esses subgêneros possuem características distintas, mas que quando utilizadas ao mesmo tempo, geram músicas com diversos efeitos sonoros: faixas remixadas, batidas mais aceleradas (versões speed-up) ou desaceleradas (imitando o efeito de câmera lenta que o consumo de substâncias ilícitas pode gerar nos usuários), e músicas dançantes com influência de diferentes gêneros: como o rap, o funk e o bass.
O trap se formou majoritariamente com líricas que abordavam temas como drogas, sexo e festas, mas também temas de denúncia social, como violência policial e desigualdade econômica. Como muitos dos artistas são pessoas negras oriundas de cidades urbanas com problemas sociais crônicos, suas realidades e vivências se tornam temas das letras, trazendo uma carga identitária e política para as músicas. Em alguns momentos, as faixas se tornam alvos de polêmicas na mídia, gerando discussões e quebrando estereótipos.
Durante a gravação de um videoclipe na comunidade da Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio de Janeiro, o trapper Chefin foi alvo de preconceito pelo apresentador Tino Junior. Durante o programa Balanço Geral, da Record TV, o apresentador se referiu ao local como um “feirão de drogas”, mesmo sem nenhuma atividade ilícita durante a gravação, onde havia crianças e veículos parados.
Trap e as polêmicas

Rapper Chefin durante a gravação do clipe (esq); Imagens da Record TV (dir); Montagem: Portal RapMais
Em nota à imprensa, a gravadora Mainstreet, responsável pelo rapper Chefin, afirmou: “A afirmação surgiu apenas de uma visão preconceituosa e despreparo profissional de uma instituição que deveria zelar pela verdade. A emissora propagou um discurso que desrespeita a favela e que infelizmente ocorre com frequência pela grande mídia.”
Voltando ao surgimento do trap, a máquina Roland TR-808 foi importante para a criação do ritmo como conhecemos atualmente. Inicialmente criada para funcionar como uma máquina de bateria eletrônica, a TR-808 foi a primeira caixa de ritmos programável, mas seus efeitos foram considerados muito artificiais e robóticos pela indústria musical da época, no final de 1980. Esse desinteresse fez com que as máquinas ficassem encalhadas nas lojas, com preços abaixo do mercado. Com isso, ritmos marginalizados, como o rap e o bounce se apropriaram da TR-808 para criar novas mixagens e alterar ritmos da bateria, como o hi-hat triplo. O que foi considerado artificial demais para ritmos mais tradicionais, acabou sendo uma alternativa para a criação de novas batidas no rap.
Com a evolução do trap independente, começam a surgir programas para a produção desses novos beats, como o FL Studio. O software trouxe uma maior possibilidade de experimentação para o trap, como o projeto do Bass House, inicialmente proposto pelo Diplo, com inúmeros tipos de ornamentações rítmicas, guturais e melódicas.
Evolução do ritmo

Diplo at EMPAC - Foto Sébastien Barré/Flickr
Conforme o estilo como inovação melódica vai se difundindo nos Estados Unidos, alguns artistas se encantam e se envolvem com o trap, levando o ritmo para fora da bolha: Lil Wayne; Drake; Future; Wiz Khalifa e Macklemore. As artistas femininas também estão presentes na cena: Nicki Minaj, Cardi B, Megan Thee Stallion, SZA, Summer Walker e Doja Cat são alguns exemplos de sucesso.
Para difundir a cultura trapper pelo globo, grandes festivais são formados nos Estados Unidos em meados de 2015, como o Rolling Loud, e a presença de trappers em grandes festivais como Lollapalooza e Coachella é cada vez mais constante.
Um dos grandes responsáveis pela difusão do ritmo para além da bolha do rap é o DJ Khaled, unindo diversos artistas de diferentes estilos em sua discografia. O lançamento da faixa “I’m The One”, em 2017, é um exemplo disso. O single uniu o artista pop Justin Bieber e os rappers Quavo, Chance the Rapper e Lil Wayne, misturando diferentes batidas e versos. O projeto estreou no topo da Billboard Hot 100, a tabela musical semanal mais importante dos Estados Unidos, dando indícios de que o trap começava a movimentar a indústria.
Trap brasileiro
No Brasil, o movimento passou a se popularizar em 2017, principalmente a partir da atuação de dois artistas: Raffa Moreira, com o single “Bro”, e Matuê, com “Anos Luz”. Para além do sucesso musical, as discussões entre os artistas nas redes sociais também movimentaram a cena, chamando atenção para o ritmo em ascensão. O que inicialmente era motivo de piada para muitas pessoas, acabou originando as raízes do que conhecemos hoje como o trap brasileiro.
A partir de então, diversos artistas passaram a compor o cenário do trap e a produzir músicas com influências de outros gêneros musicais brasileiros. Além do eixo Rio-São Paulo, a indústria fonográfica incorporou elementos específicos de cada região do Brasil, e seus artistas se tornaram expoentes locais.
No Rio de Janeiro, há o boom do trap no cenário popular na década de 2010. Em 2012, ocorre a fundação da gravadora Baguá Records, que contava com nomes como Xamã, Jhony MC e Sid; em 2017, da Pineapple StormTv, gravadora que lançou mixtapes e perfis de rappers como Choice e Orochi; e no mesmo ano, o grupo 1Kilo atinge as paradas de sucesso com o single “Deixe me Ir”. Apesar da faixa ser mais voltada para o hip-hop, com uma pegada acústica, o grupo lançou mixtapes e projetou nomes para o mercado fonográfico, como Pelé Milflows, Knust e Nabrisa no mercado musical.
Mas é com a fundação da Mainstreet que a cena trap se consolida no Rio de Janeiro. A gravadora foi criada pelo trapper Orochi, em meados de 2020, e passou a gerenciar a carreira de nomes promissores para a época: Poze do Rodo, Oruam, Chefin, Borges e Bin.
Com o aumento da produção no Brasil, o gênero foi ganhando mais espaço na grande mídia e nas plataformas de streaming, sendo amplamente consumido por diversas classes sociais. Em entrevista ao O Globo, Lucas Lang, empresário fundador da Mainstreet, afirmou: “Nosso diferencial foi entender que esses talentos que cantavam funk também podiam fazer um trap preto e favelado, com a estética do Rio. Mostramos que trap não precisava ser só dinheiro e mansão, como o pessoal da gringa faz, mas que ele podia ter uma cara nossa, com favela, funk, baile e as histórias de vida dos moleques.”
Expansão no Brasil
Foto do trapper Orochi, fundador da Mainstreet; Reprodução: Facebook/Mainstreet Records
Em paralelo, outros selos e gravadoras ganham força no estado: como a Rock Danger, atual gravadora de Xamã e Major RD, e a NadaMal, produtora de Filipe Ret. O selo NadaMal foi lançado junto à música “Prosperidade”, faixa marcada pela participação de nomes pulsantes da cena, como Anezzi, Caio Luccas, Dallass e o próprio Ret. Em um verso da música, Filipe canta “Prosperidade pra nós (yeah) / Viver me faz melhor (yeah) / Quero voar contando as notas de cem eu vou / Multiplicando tua vibe”, demonstrando o senso de coletividade e ascensão financeira proporcionado pela música. Além desses artistas, Caio Luccas, Mc Maneirinho e Maru 2D são nomes empresariados pela NadaMal.
Foto promocional do single “Vizão de Cria 3”; ONErpm/Divulgação
Já em São Paulo, um dos pioneiros foi o grupo Recayd Mob, que contava com nomes como Igu, Dfideliz, Derek, Jé Santiago, e o já citado Raffa Moreira. Haikaiss, UCLÃ e Costa Gold são outros grupos da cena paulista. Atualmente, Veigh, KayBlack, MC Caverinha, MC Ryan SP, e as gêmeas Tasha e Tracie são alguns dos expoentes do estado.
Na cena de Belo Horizonte, muitos nomes avançam em protagonismo no mainstream. Nomes já bastante conhecidos como Djonga, Froid, Chris MC, Cynthia Luz, FBC e Sidoka estão cada vez mais se consolidando como as referências de uma cena mais recente, mas com raízes profundas no hip-hop.
Indo além do Sudeste, vale destacar nomes como Don L e Flora Matos, ambos de Brasília. O Nordeste também é um grande berço de artistas, com destaque para os estados da Bahia, Pernambuco e Ceará. Baco Exu do Blues (BA), Jovem Dex (BA), Jaya Luuck (BA), Diomedes Chinaski (PE), Luiz Lins (PE) e a gravadora “30PRAUM”, liderada pelo trapper Matuê (CE), e responsável pelo gerenciamento dos artistas WIU (CE) e Teto (BA).
Matuê no festival The Town 2023; Wallace Teixeira/Futura Press
Como é possível observar, o trap não é um estilo estático e possui características específicas de acordo com a vivência de cada artista. As músicas representam as raízes e as influências sociais de cada região, unindo diferentes ritmos e mixagens.
Essa mistura e união de subgêneros tem conquistado o público brasileiro e o trap pode ser encontrado nas paradas de sucesso do país. No Spotify, principal plataforma de streaming do mundo, curadorias, experiências digitais e campanhas de marketing têm sido realizadas para difundir o ritmo entre os assinantes do aplicativo.
“Com iniciativas de apoio à cultura urbana no Brasil, reforçamos nossa posição não apenas de melhor parceiro da comunidade de artistas de música no país, como também de antecipar as tendências de consumo e de conectar com variadas audiências, neste caso, a Geração Z, que tem demonstrado um crescimento exponencial do consumo de rap e trap”, explica Manuela Ramalho, líder de marketing no Spotify no Brasil, em entrevista ao Propmark.